domingo, 7 de setembro de 2008

A DEMOCRACIA E A ACÇÃO COLECTIVA NO CAMPO DA SAÚDE

Entre 2006 e 2008 vários protestos e formas de mobilização social ocorreram em várias cidades do país. Milhares de cidadãos protestaram e desenvolveram múltiplas formas de acção colectiva com o objectivo de manterem os actuais serviços de saúde providenciados pelo Estado e Serviço Nacional de Saúde.
O presente artigo procura contribuir para o encontro das causas, processos e dinâmicas sociais fundamentais que resultaram nos protestos verificados um pouco por todo o país contra o encerramento de Maternidades, Serviços de Urgências, alteração dos horários dos SAP’s, ou outras mudanças organizacionais no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
A análise que aqui é apresentada pretende focar-se na relação entre acção institucional e acção colectiva, ou seja, entre a governação, os domínios institucionais da sua actuação, o desempenho dos actores colectivos nos campos profissional da saúde e político, até à formação das identidades colectivas e quadros de interacção actuantes no plano das mobilizações locais.
As populações respondem aos apelos das autarquias afectadas pelas mudanças. Depois das posições tomadas pelas instituições políticas locais (Câmara Municipal, Assembleia Municipal e Assembleias de Freguesia), rapidamente são organizadas formas colectivas de mobilização e manifestação. O principal apoio logístico parte das Câmaras Municipais, mas os protestos extravasam a acção institucional autárquica.
Câmaras Municipais e movimentos de cidadãos marcam encontros com a população, incitando-os a protestar, fazem comunicados à imprensa, e estão nos “directos das televisões”. São criadas várias Comissões de Utentes. Autarquias e Movimentos Cívicos criam “blogs” e campanhas na internet, promovem iniciativas que incluem "spots" radiofónicos, "outdoors" espalhados pela cidade e o envio de mensagens de correio electrónico; ou no plano legal-jurídico, interpõem providências cautelares contra o encerramento dos serviços de saúde (que são alvo sistemático de recurso por parte do Ministério da Saúde).
Verificaram-se protestos em cerca de sessenta e seis cidades portuguesas. Algumas manifestações atingem mais de cinco mil pessoas como são os casos dos protestos de Chaves, Mirandela, Vendas Novas, Barcelos, Valença, Vila Pouca de Aguiar e Arcos de Valdevez.
A introdução de reformas na Saúde por parte da Governação em Portugal insere-se num determinado contexto económico, político e social do País, fortemente condicionado pelos objectivos de equílbrio orçamental e de redução do défice público.
O encerramento dos Serviços de Atendimento Permanente nocturnos, a reconversão das Sub-Regiões em Agrupamentos de Centros de Saúde, e, sobretudo, a criação de Unidades de Saúde Familiar, visam a criação e consolidação de novas realidades institucionais no sistema de saúde nacional.
No conflito à volta dos movimentos de saúde verificados um pouco por todo o país, assiste-se a uma «tensão manifesta» entre a legitimidade técnico-científica emanada da governação e instituições de saúde e os interesses sociais das populações envolvidas e mobilizadas.
A Reforma em curso coloca novos e múltiplos desafios ao Sistema Nacional de Saúde e à cultura das organizações de saúde. Novos actores e agentes institucionais reposicionam as suas funções e atribuições profissionais. Assim sucede com a classe médica e restantes profissionais de saúde, bem como com outras instituições e organizações como o INEM e Bombeiros.
As dinâmicas da acção colectiva dos movimentos de saúde revestem-se de três momentos fundamentais: as relações institucionais entre os actores mais directamente envolvidos (entre a Governação, Ministério da Saúde e Autarquias); a disputa entre legitimidades de actuação colectiva no campo político e mediático; e a mobilização colectiva de âmbito local.
A “pressão” da mobilização colectiva local, o encerramento de serviços sem a criação de novas condições, o defraudar de expectativas, e a mudança de locais de Serviços de Urgência Básicos (SUB) sem justificações de carácter técnico, fazem aumentar as críticas de manipulação política e de aproveitamento político-partidário dos relatórios produzidos pelas Comissões Técnicas.
A luta política local e nacional encontrava no encerramento de serviços de saúde um tema de confronto e conflito político, capaz de integrar uma determinada aspiração no funcionamento do sistema político e de alcançar níveis perfomativos de mobilização política.
A identidade colectiva dos movimentos de saúde implicou dois níveis interligados de envolvimento: um mais directamente local; e um segundo nível, directamente interligado com o primeiro, de pregnância social nacional e formulações ideológicas sobre as opções políticas concretas na área da saúde.
E em concomitância, os movimentos de saúde tomaram duas faces de uma mesma identidade colectiva: uma identidade populista e uma identidade de projecto. Ou seja, verificou-se o emergir e transposição de identidades regionais e locais, de cariz popular. Num certo sentido, estes movimentos assumiram um Efeito Nimby.
As posições do Ministério da Saúde de encerrar todos os SAP que não atendam, em média, um mínimo de 10 utentes no período da madrugada, ou o escasso número de partos realizados pelas Maternidades a encerrar, o cálculo das distâncias a percorrer, ou o modo alternativo de socorro via ambulância, são incompreensíveis para os protagonistas das acções colectivas desencadeadas.
A argumentação discursiva e simbólica dos movimentos e populações passou pelo recurso ao texto da Constituição, pela crítica às supostas atitudes economicistas do Governo, pelas consequências nefastas da interioridade e subdesenvolvimento (económico e social) do Concelho ou Região, e à falta de diálogo e discussão democrática dos interesses das populações que estão em causa.
As relações sociais e políticas são inerentemente feitas de tensões e contradições sociais, assumindo estas um carácter mais visível e concreto nas conflitos sociais produzidos pelas sociedades. A democracia é sinónimo de liberdade, igualdade, justiça e direitos sociais. Neste início de século e milénio, constata-se as fragilidades e limitações do modelo de democracia representativa. Desenvolvem-se os apelos para uma democracia participativa e directa, onde os trabalhadores e cidadãos vejam reforçados as suas capacidades de intervenção e mudança social e política. As lutas sociais sempre tiveram uma importância decisiva na história e tal se verifica actualmente, sobretudo na Europa e América Latina.
É este príncipio democrático que encontramos não só nos movimentos de utentes dos serviços de saúde contra a empresarialização do direito universal à saúde, mas também nas lutas dos professores e na defesa da escola pública, como nas lutas dos pescadores, cada vez mais uma classe profissional em grande risco de pobreza, ainda na Administração Pública, nos trabalhadores que lutam contra a deslocalização das suas empresas, ou contra o aumento dos preços dos combustíveis.
Viva a DEMOCRACIA!